Saturday, December 17, 2005

Veni Creator


Encontrei na surdina das vozes um labirinto indesejável, uma insanidade implantada em ambos os hemisférios, uma fome de fim interminável. Pouco a pouco, senti-me a absorver as vozes que em surdina deflagravam em meu redor; o isolamento era inútil – eu estava contaminado pelo interior, não pelo ar adjacente.

Assim acontece quando se está exposto; e eu percorri o filamento das lâmpadas como um peregrino buscando uma luz mais quente, um repouso mais inteiro. E caminhei longamente pela calçada basáltica – não me dirigia em nenhuma direcção, em nenhum sentido, mas o passo era firme. Gostava de me pensar como um produto escalar apontando para o firmamento, e não um vector afiado como uma lança. Não, os meus dedos estavam gastos pelas carícias intermináveis e as unhas já não me cresciam.

Quando se caminha como peregrino, é natural encontrar outros – a que chamamos irmãos, tal é a ligação estabelecida. Mas nesta caminhada fui encontrando pouca gente.

Nas dunas encontrei um mago que acompanhava o andamento das ondas com as mãos unidas. As mãos ondulavam sobre o ar como se a arrebentação estafasse a terra. Era um maestro Eslavo naufragado numa expedição de muitos navios. Mas era um homem desiludido e não conseguimos comunicar.

Encontrei pouca gente e com poucas partilhei formas verbais idênticas. Com poucas partilhei o meu pão e dividi a minha compota de figos.
Um dia encontrei uma mulher estática na berma. Tinha o cabelo muito claro e fino como uma luz miudinha. Assemelhava-se a uma estátua, ou a uma figura paralisada de Pompeia; tinha as mãos sobre a cabeça e o dorso reclinado. Parecia que se protegia, ou que se escondia. Na realidade ensaiava uma dança ancestral – só que habitava um tempo diferente do meu, impedindo-me de aperceber o seu movimento, impedindo-a de sentir a minha presença. Era um passado que eu lhe podia antecipar, ou impedir. Éramos luzes de frequências diferentes, de galáxias incontactáveis. Éramos de tempos diversos.

De todos os sítios por onde estive, aquele que me acolheu de forma mais genuína foi um local gélido e esconso no Norte. O gelo era azul eléctrico e emanava uma poeira de luz indizível durante a noite. A luz mais bonita que jamais vira. Lá apenas moravam um ancião com a sua neta. A neta era muito doente e nunca a vi abrir a boca. O avô falava numa língua que eu não identificava. Ele passava o dia a tratar dela com intenso carinho. Dava-lhe banho, vestia-a, alimentava-a. Também ficava muitas horas sentado no alpendre assistindo ao fim do azul junto à escarpa de Elsinore – assim chamavam à quebra súbita da montanha até ao planalto. Eu acompanhava-o com pudor, por vezes ensaiava um sorriso. Ele não me respondia. A sua voz era, aliás, um murmúrio rouco que parecia não intercalar as sílabas.

Um dia pelo o final da tarde, ele não apareceu no alpendre. Deixei-me estar ali aninhado, aguardando o romper da lua cheia. A certa altura comecei a ouvir uma voz bem lá no fundo. Uma voz como um cântico de sereias, uma Lorelei embriagada – doce, sereno e diabólico. Deixei-me ir até à fonte da melodia e lá encontrei o avô – a sua figura trémula no luar como uma aguarela. Do seu canto emanavam dois violinos, uma viola, e um violoncelo. O piano chapinhava ao fundo como uma cascata no Éden. A sua voz era limpida como um cristal.

Ele segurava a neta nos braços e tinha o olhar preso na Lua. À sua frente, uma cova que mais se assemelhava a uma armadilha para ursos. Ele não me ligou – acho que nem reparou que tinha chegado – pois falava com o seu Deus, e eu apenas escutava envergonhado.

Finalmente o seu canto cessou. Olho-me muito fixamente – estivera a chorar – e esboçou-me o primeiro sorriso desde que chegara. Eu baixei os olhos e não consegui devolver-lhe nada. Faltava saliva à minha boca porque faltavam palavras na minha cabeça. Ele desceu à cova com cuidado, deitou a menina, e aninhou-se ao seu lado. Eu quis ir-me embora; virei-me, mas ele chamou-me com uma voz doce. Aninhado ao pé da neta, fazia-me gestos que eu não percebia. Parecia que me pedia para descer e ir ter com ele. Até que apontou para a pá ao meu lado. Queria que eu o enterrasse. Fiz-lhe o gesto para verificar se era isso mesmo. Ele acenou que sim. E eu acenei que não. Disse-lhe:

- Não.

Ele respondeu-me com gestos de mel delicado – muito lentos escorrendo pela terra. A lua esmorecia-lhe no olhar; ele fazia festas sobre o cabelo da miúda e depois agarrava-se a ela com força. Finalmente juntou as mãos como se para rezar, mas o que me dizia era: por favor.

Atirei a primeira pá cheia de terra. Ele sorriu de novo e disse-me num alemão enrolado:

- Auschwitz.

A sua voz trancou-se de imediato. Virou-se para o lado e abraçou a neta com os seus braços enormes e fechou os olhos. Enquanto devolvia a terra, o meu olhar estava preso sobre o dela. Os seus olhos não estavam completamente fechados. Eu sentia um azul esgueirando-se. Mas depressa as minhas lágrimas me turvaram a visão e tive de parar. O azul era eléctrico como a montanha acima. Ele abriu o olhar e olho-me do fundo do chão. Repetiu-me:

- Auschwitz.

Quando terminei, permaneci um pouco junto à esteira da morte. Ele terá morrido escutando a minha vida. O meu batimento. Só muito mais tarde estranhei nada ter ouvido vindo do fundo da cova. Só mais tarde percebi que teria sido natural que algum som abafado se tivesse solto. Mas nada ouvi. Ele engolira o silêncio sem piedade. Nunca percebi o que significava para ele Auschwitz.

No regresso pensei muito sobre esse significado. Sentia-o mais do que o entendia. Como se a humanidade possuísse um desígnio pontual elementar – pelos menos um acto exigível em toda a vida, e o do avô era o de não se separar da neta. Pensei que talvez existisse sempre um momento escuro em que se sente a língua esquentada de pistola sobre as têmporas. E se aguarda um click. O click: o último momento antes do próximo, o momento mais longo de todos. E quando Auschwitz Birkenau se estende estupendo na mente só há uma de duas coisas a fazer – e nenhuma delas é esperar; nenhuma delas é o nada – ou realiza-se o acto ou o acto acontecerá por si; entre o click e o pousar do metal sobre a madeira inquieta passam dois instantes de precipitação: o primeiro fica longe de mais porque foi incerto e o segundo demasiado próximo, porque tentou de imediato corrigir o primeiro, Sim; uma precipitação nunca vem sozinha; vem aos pares. É como as sandálias.

Foi nessas sandálias que regressei, sem saber que afinal, já tinha chegado. Tinha pousado a minha peça de metal. Tinha bebido a pólvora num chá de gengibre. Na surdina das vozes encontrara um desígnio acolhedor como uma oração que desliza pelos tendões da voz. E a voz murmurava breves vírgulas sonâmbulas deixadas ao acaso pelo sábio avô:

“As migalhas adormecem sobre a tarde estafada
E molham o destino com a sua falta de sentido;
É como uma sede por se ser por inteiro,
Uma vida de bocadinhos deliciosamente
Aprisionados numa vontade de existir.”

3 comments:

João Tomaz said...

Estou sem palavras. Utilizaste-as todas!

João Tomaz said...

Caro Veni, faço-lhe uma referência em jeito de agradecimento no meu blog. Como já disse ao intrujo, o mínimo que o senhor poderia fazer era lá pôr os olhos.

Anonymous said...

http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/v282.txt


eh eh eh eh