
Especulação: do latim speculari que significa olhar coisas distantes, no espaço e no tempo.
Nós estamos no promontório extremo dos séculos!… Por que haveríamos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem. Já estamos vivendo no absoluto, pois já criamos a eterna velocidade omnipotente. – Manifesto futurista, Marinetti, 1909
A capacidade de acumular conhecimentos, e de os transmitir de uma geração para outra, esteve na génese da evolução do sapiens; esta tradição oral – e como tal frágil e algo gasosa – solidificou-se com a invenção da escrita, objectivando os conceitos, facilitando o acesso, e aumentando a amplitude temporal da colheita de informação (antes limitada à memória da geração passada). No fundo, tratou-se da invenção da memória ROM da humanidade – que coincide com o fim de um período designado por pré-história.
Tal permitiu que Newton lesse os trabalhos de Euclides e de Kepler, e proferisse a célebre sentença “cheguei longe porque me apoiei nos ombros de gigantes”. Frase essa que mais tarde foi repetida por Einstein, embora se referisse a James Maxwel, e não a Newton. E toda a ciência encontrou uma função causal, permitindo que as perguntas de uns fossem respondidas por outros.
Existe, no entanto, um domínio da actividade humana que não apreendeu ainda as vantagens do acumular do cognoscível e que ciclicamente se repete, e sempre reagindo como se de uma nova realidade se tratasse: a história financeira.
O domínio das finanças é o campo de actividade do sapiens com menor apetência para a consideração dos acontecimentos passados como base sustentável para o esclarecimento do presente. Nesse domínio, é quase absoluto o fim da história. O que a torna direccional, e como tal dialéctica.
Existem dois tipos de especuladores: aqueles que crêem que o valor de um activo vai crescer indefinidamente, sem colocar nunca a hipótese que, a partir de certo ponto nesse crescimento, o seu valor transaccionável seja superior ao seu valor real; o segundo tipo de especulador tem a consciência perfeita que o é, e sabe que o valor pelo qual está adquirir um activo é superior ao seu valor real, e que o valor pelo qual o pretende vender, ainda o é mais. O seu segredo – julga ele – é que saberá sair a tempo, aproveitando ao máximo a valorização ilusória desse bem. O problema é que raramente definem a tempo que tempo é esse.
O especulador lida com o mercado de uma forma estranhamente idêntica à forma como um futurista lida com a sociedade e com a arte. “Por que haveríamos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível?” Assim falava Marinetti. O futuro é glorioso, não por mais nenhuma característica se não a que se encontra no futuro. E de facto, o impossível é o limite na cabeça de especulador.
A especulação congrega dois elementos tão perigosos em conjunto que deviam habitar universos diferentes: a vontade absoluta de ganhar dinheiro, e o desejo relativo em ganhar mas do que o outro. São dois elementos diversos que juntos se reúnem numa dinâmica de grupo auto-catalizadora em dois estádios. O reagente inicial – a vontade de ganhar dinheiro – desagua em dinheiro – que por sua vez é catalisador para ganhar mais do que o outro. Porque não fomos os únicos a ganhar. Mesmo quando o resultado não é o ganho mas a perda, essa perda é também por ela, um catalisador para desejar reaver o capital inicial. É de facto uma reacção única; o resultado da reacção é indiferente – resulta sempre na catalisação da reacção inicial.
“A especulação é benigna quando são pequenas bolhas que seguem a corrente do rio de uma empresa. Mas torna-se num problema grave quando as bolhas são as empresas levadas num rápido especulativo”. Foi assim que Keynes definiu a especulação e introduziu o conceito universal de bolha. A formação desse rio encerra a materialização de um comportamento irracional característico de uma tomada de decisão em grupo – decisão essa que nunca seria tomada individualmente. Acresce a esta irracionalidade o auto-comprazimento conjunto contra os que preferem designar de movimento especulativo uma forma honesta de ganhar dinheiro. Esses cavaleiros do apocalipse são mesmo escorraçados do circuito financeiro, como mulheres menstruadas de um navio quinhentista.
É um facto pouco conhecido que vários economistas previram com alguma precisão o crash de 1929. Entre eles, um dos fundadores da reserva federal Norte-Americana, e o editor da Economist. Em 1987, o NY Times encomendou um artigo a John Kenneth Gailbraith sobre a euforia económica marcada pelas junk bonds, e o intenso M&A na era Reagan. O artigo era tão demolidor que o Times preferiu não o publicar. Reclamavam que apresentava um cenário demasiado pessimista, e que, com a estrutura actual do sistema financeiro, era impensável acontecer um crash. O impensável aconteceu em Outubro desse mesmo ano.
A história é cíclica em relação à excessiva valorização de um activo, e os bancos têm um papel essencial neste processo. Não existe nenhuma inovação significativa a nível bancário desde que estes se lembraram que podiam emitir títulos de dívida na forma de notas num volume superior ao valor dos depósitos em moedas. Passa sempre tudo por emprestar dinheiro sobre o valor de um activo. Os nomes dessas operações podem ser diferentes, mas o princípio é sempre o mesmo. O valor agora é inferior ao valor amanhã, pelo que, contra a consignação desse activo, posso emprestar dinheiro. Os activos variam – podem ser tulipas, blue chips, ou activos imobiliários. Mas o princípio é sempre o mesmo.
Mais intrigante ainda é a reacção após crash do mercado. São feitas análises no sentido de identificar factores exógenos ao próprio mercado que justifiquem o seu mau comportamento (e.g. em 1987, o factor determinante identificado foi o deficit do governo federal dos U.S.A).
É no entanto errado pensar que a especulação é um mau per se; mesmo o investidor a longo prazo é um especulador porque espera que os activos adquiridos se valorizem. Caso contrário não investiria. E a especulação traz liquidez o que torna os mercados mais eficientes. E também jardins bem mais bonitos.
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