
O céu dentro da sala iluminava a poeira e esta cirandava em mornos movimentos de convexão; o calor do fim da tarde inundava os espaços tranquilamente. Junto à poeira, fragmentos de fumo eram desbaratados da boca dela como papagaios atordoados pelo vento, e o silêncio era calmo, toda uma calma inundando a espera agora consumada.
Aproximei-me da janela, e pouco tempo bastou para sentir as temporas mornas, sentir o calor iluminar-me a pele; o céu entrava devagarinho naquela sala.
“Sempre soube que voltaríamos a estar juntos, sempre o senti.” – Disse-me ela entre papagaios. Sempre o senti: as palavras ecoavam dentro de mim; as palavras latejavam em mim. Apeteceu-me negar-lhe a certeza; mas a espera havia sido realizada. A espera e a dimensão da espera até ser abandonada. Aquele intervalo de tempo que precede o abandono. Quanto tempo é esse tempo? Virei-me, e via-a com a luz amedrontada esbatendo a sua imagem.
– Sempre. Ora aí está uma palavra que não combina muito connosco…
Ela sorriu, abanando a cabeça, ainda que apenas levemente, e meigamente o céu junto ao sorriso desmaterializou-se. Ela baixava quase sempre a cabeça no sorrir. Ficámos presos no olhar um do outro; os sorrisos engulidos, a luz vertida, e o fim da tarde desbotando-se.
Eu sabia, assim como ela, que toda aquela certeza arremessada era uma revisão inapropriada da história. Não, ela nunca possuíra essa certeza e sim, eu sempre tivera essa esperança. Mas sim, ela sempre procurara um sentido nas coisas – mesmo que caucionada por uma mistificação artificial – e sim, eu nunca a condenara demasiado por esse processo de desculpabilização. Aliás, essa noção de destino sempre me fora útil.
Tentava lembrar-me de um fim de tarde idêntico; sabia que possuía alguns. Alguns debruçados sobre sorrisos e segredos. Alguns com ela. Outros apenas eu e o fumo; o som e a fúria; o tempo e o modo.
Lembrei-me de novo do Jorge de Senna. Sentia-o encostado junto a um precipicio, as palavras suicidando-se mansamente. “Como queiras, meu amor, como queiras...” – ia proferindo em voz murmurante. O resto ia progredindo na sua mente, o poema delineando-se e os léxicos aglomerando-se. Lembrei-me também do poema do Swing: “ É tudo uma questão de swing, my darling, uma questão de saber sair a tempo, Oh yes, Oh no.” Sorri um pouco ao murmurar em voz alta, Oh yes, Oh no. Ás vezes sorriu assim, de forma inadvertida, e é-me impossível arranjar a razão imediata. E depois continuei, mentalmente: “Não, Eu nunca tive queda para kamikaze.”
“O que foi?” – Perguntou-me…Mas não aguardava resposta.
Era a minha vez de acender um cigarro. Voltei-me sobre a janela, assistia aos diapositivos fragmentados das folhagens das árvores, a esfera solar adormecendo tranquila.
Ela aproximou-se, apertou-me o peito com as mãos, apertou-me o pescoço com os lábios. “Tenho de ir” – Expeliu. Tens a certeza, pensei em perguntar-lhe. Ás vezes os acontecimentos precipitam-se de forma tão irreal que sentimos a imaginação apenas como um ninho do real. Um ninho com palhas de sonhos e beijos ousados; um mundo elaborado num futuro meticulosamente detalhado. Um mundo que é apenas a fé de o ser.
“Eu sei – Retorqui. Já estás atrasada”. Os passos dela arrastaram-se, incompletos; ainda senti o frisson da saia elevando-se pelas pernas. Ainda senti o desejo de me virar. Permaneci à janela, afogado no fim da tarde, embriagado com esta verdade que geramos e adulteramos; verdades e certezas que se anulam com o erguer de uma sobrancelha, um cabelo muito negro, uma voz muito intima, uma mulher muito próxima e uma verdade muito nossa.
A espera e a dimensão da espera até ser abandonada. Aquele intervalo de tempo corrompido de esperança; essa esperança que mantém a espera como matéria plausível. A amplitude da espera ou a dimensão da esperança. E aquele ponto estrangulado, aquele cerne anguloso em que a espera se transmuta do momento anterior ao próximo – porque é o próximo que se aguarda – para o momento final – porque se adquiriu a certeza que ele se extinguirá em si mesmo. Resta o tempo entre essa percepção e o erguer-se da mesa do café, ou o levantar-se da cama, ou o deitar-se nela, que nada mais é senão o cerne espetando-se no nervo do imaginário; o cerne rasgando a expectativa da esperança – que é agora nada mais do que isso: uma expectativa, porque se extinguiu no acto da espera.
As palavras assim pensadas deram-me em mais um sorriso; apaguei o cigarro e virei-me. “Quando nos vemos de novo?” – inquiri. O céu era asfixiante junto à entrada onde ela se encontrava, de costas viradas para mim, os ombros muito morenos, a mão apertando a maçaneta.
- Quando quisermos…
E saiu.
O céu ia sendo expulso, vagarosamente. Uma memória aguardava a tarde, entretanto finda de espera tornada ausente. Aquele frisson da saia erguendo-se acompanhou-me de bom grado ainda algum tempo como o restolho da chuva de uma televisão que perdura bem depois de a desligar-mos; ou uma musica que se extingue no gira-discos mas não na cabeça; ou – pior de tudo – um cheiro que nos habita bem depois de dele termos sido despejados.
Os cheiros permaneciam junto ao rebordo da dormência; permaneceriam naquele quarto, e aquele quarto com tudo dele numa poça de memória.
Lembrei-me que também estava atrasado. Por pouco esquecia a noite, aproximando-se; mergulhei no banho.
Ainda permaneci um instante inquieto parado à porta. Faltava-me algo. Não liguei muito a isso. Fechei-a e fui-me embora. O tempo estava denso e irrealizável.
A espera iniciara-se. De novo.
4 comments:
Este é o texto que mais gosto. Penso que deves tentar estabelecer um compromisso entre profundidade e ritmo.
Gostei muito!
Beijos,
Tianini
Lindíssimo! Adorei este texto, pela sua profundidade, jogo de sentimentos e verdades nele contidas. Lido pausadamente é realmente tocante. Tocou-me!...
Por acaso o senhor perdeu a veia criativa?
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