Sempre que a vista me fica cansada e as mãos me começam a tremer, a escrita fica-me dócil e obediente como se as palavras zumbissem na cabeça a pedir para vir cá para fora; e eu deixo-as ir brincar para a rua como crianças no recreio da escola.
Sempre que a vista me cansa e as olheiras se cerram como duas aranhas aconchegando-se num ninho, o pensamento solta-se e perde-se por entre os dedos como um líquido frágil e morno. Aí desaguo sobre a infância e vou sempre dar à casa onde gastei a minha criancice; desaguo sobre a mata a ferver com caruma seca; desovo na água fresca do poço. Mais que o pensar, as sensações enumeram-se como se fossem a fuligem esvoaçante de um carvão ardente feito de infância irrequieta.
Sempre é uma palavra que se gasta facilmente. E tento evita-la como os cães evitam as salamandras e os bichos da peçonha com aquele ar de quem não quer ser visto a evitar.
Na casa onde gastei a minha infância havia uma cerejeira onde cresciam cerejas que não se podiam comer. Mas a flor da cerejeira era a mais bonita das flores, por isso a cerejeira lá permaneceu, criando flores e não cerejas.
Sempre que deixo de pensar, junto as mãos e sinto o tempo escorrer-se pelas frinchas dos dedos. Não me importo que ele passe assim, nem que o pensamento deixe de o ser, mas custa-me sentir como uma ampulheta de mim mesmo, em que me esvazio aos poucos do tempo que me resta.
Sempre é uma palavra que não consigo perceber de onde apareceu. Mas trago sempre duas ou três comigo, não vá o diabo tecê-las. Quando era criança inventei uma palavra para o sempre do espaço porque disseram-se que essa palavra era infinito e eu não gostei muito dela. Um sempre que fosse a distância da minha casa até à serra e daí até outra serra e dai sem nunca mais acabar como uma viagem sem fim. Satisfazia-me que o nunca do espaço fosse o vazio porque o vazio eu percebia muito bem.
Mas esqueci-me da palavra uma noite quando adormeci e me esqueci de me despedir dos meus amigos imaginários que eram pessoas que não existiam mas que eu fingia que existiam só para conversar com eles sobre coisas importantes.
Eles ficaram chateados e ficaram-me com a palavra. E eu transformei a infância numa espécie de coisa incolor cheia de rasgões nos joelhos e sabores que não voltei a provar. Deixei-a a um canto cheia de palavras inventadas – ou porque não gostava das que existiam ou simplesmente porque não as conseguia dizer.
Ou então porque gostava de inventar palavras. Palavras como cerejeiras que só dão flor.
2 comments:
amor:
do Lat. amore
viva afeição que nos impele para o objecto dos nossos desejos;
inclinação da alma e do coração;
objecto da nossa afeição;
paixão;
afecto;
Beijo.
Tal como te disse, os teus post saboreiam-se, mas não posso deixar de te dizer que já li enumeras vezes este e de cada vez que abro o teu blog volto a lê-lo. Está fabuloso.
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