Friday, September 01, 2006

Lettre à Monsieur Kundera



Actos existem em que não estamos nós, mas um aglomerado de primeiras pessoas do plural, todos entrelaçados por um único desejo, mesmo que, por vezes, seja imperceptível.

É exemplo disso o acto de aplaudir; nesse acto existem sempre duas incertezas: a hesitação do aplauso inicial (ninguém quer ser o primeiro a aplaudir), e a hesitação da duração desse aplauso (ninguém quer ser aquele que vai dar as últimas palmas que irão soar a um móvel a cair no chão).
Em ambas a circunstâncias reside o temor de, numa sala repleta de público, o único aplauso a ecoar ser o nosso, e de imediato todos os olhares se pousarem sobre nós. Dirão então: “Será que aquele ainda não percebeu que não está mais ninguém a aplaudir?” Ou pior: “Porquê que ele está a bater palmas se a peça ainda não acabou?”

Constrangimentos sucessivos surgem nestas situações, todos relacionados com o sentimento de nos sentirmos isolados da multidão. Porém, casos há, em que não é a solidão que nos constrange entre a multidão. Durante o acto do aplauso, esse acto partilhado pelo público, surge um sentimento de comunhão entre perfeitos desconhecidos por um elemento que, provavelmente até à altura, seria também desconhecido.

Os aplausos propagam-se (a palavra correcta seria francesa: répandre) e em nós propaga-se o fervor da comunhão. Existe um claro desfasamento entre a decisão tomada de terminar o aplauso, e o acto físico de o terminar. Pegando nas palavras de Jorge de Senna, um dos poetas mais esquecidos do meu pequeno país e retirando-as do seu contexto: “...Este pousar em que não estamos nós, mas uma sede, uma memória...” Este pousar em vez de mãos que se interrogam, é um estremecer de vibrações, uma energia colectiva que se aglomera, e perpetua o acto do aplauso, sempre, muito para além do razoável. Pegando no mesmo cenário (caso ainda não saiba estamos num teatro e acabamos de assistir a uma interpretação gloriosa do Hamlet), identificamos outro conceito essencial nesta comunhão de massas: a energia mínima de activação.

Esta será a quantidade energética necessária para que surjam aplausos, ou que as pessoas se levantem, ou que vaiem a interpretação. Assim, se no final do espectáculo, apenas uma ou duas pessoas se levantam para aplaudir a interpretação, as outras pessoas não se sentirão pressionadas para o fazer, e continuarão o seu aplauso sentadas.

Se no entanto o número de pessoas que se levantarem chegar à energia mínima de activação, o restante público sentir-se-á pressionado para o fazer também, e é certo que a maior parte da sala se irá erguer para aplaudir de pé (mesmo que considere que a interpretação foi apenas razoável); tal não significa que todos o façam (alguns poderão entender que a interpretação foi de fraca qualidade), mas por certo que agora esses irão sentir-se como nós há bocado, quando começamos a aplaudir esta mesma peça antes dela ter acabado; e essa sensação é a que pertencem a uma minoria e que estão a ser observados pela vasta multidão, com desdém.

Em tudo o que não é certo nem objectivo, seguir o outro faz sempre imenso sentido – mesmo que o outro seja desconhecido e não concordemos particularmente com ele.


Talvez seja por isso, que a arte é tantas vezes um mito fundamentado pela opinião de poucas pessoas, e acaba por, enquanto arte, ser admirada, nem por artistas nem por qualquer público, mas por algumas pessoas muito decididas no acto de aplaudir, ou vaiar.

2 comments:

Anonymous said...

Não aplaudo o seguimento automatizado das massas. Manifesto-me silenciosamente numa espécie de comunhão interior. Talvez haja uma sala cheia de pessoas como eu. Ou talvez não haja ninguém. Não me incomoda. Ou talvez sejas apenas tu quem está sentado ao meu lado.

João Tomaz said...

Curiosamente ando a ler a Brincadeira... Boa análise, estando eu certo que a maioria das pessoas pensa que não age assim. Esqueceste-te claro dos jogos da bola nos quais nem sequer faz sentido falar em energia mínima de activação... Retenho particularmente o último parágrafo. Óptimo fecho de post!