A luz que entrava pela casa era asfixiante; nunca consegui adormecer com uma luz daquelas. A luz era uma luz de espera. Aguarda a tua vez, agarra o silêncio com os lábios, não te cortes. Não conseguia ficar ali.
A inquietude. Saí. Tinha de sair. Com uma luz destas o céu encontra-se queimado; tem as nuvens meio sonolentas a expandirem-se como uma mancha de tinta. Quando era novo lembro-me do meu pai na sua secretária com as mangas em tecido a cobrir os punhos por causa dos borrões; cheiravam ao verniz das unhas das mulheres. Eu gostava do cheiro; gostava do cheiro a asfixia.
A inquietude. Saí. Tinha de sair. Com uma luz destas o céu encontra-se queimado; tem as nuvens meio sonolentas a expandirem-se como uma mancha de tinta. Quando era novo lembro-me do meu pai na sua secretária com as mangas em tecido a cobrir os punhos por causa dos borrões; cheiravam ao verniz das unhas das mulheres. Eu gostava do cheiro; gostava do cheiro a asfixia.
Antes de a minha mulher ficar doente arranjava as unhas todas as semanas. E ia ao calista. Acho que tinha mais cuidado com as mãos do que com o cabelo. Quando discutíamos elogiava-lhe o cabelo que era muito fino e castanho. Sabes muito bem que não faço nada de especial. E ficava com a certeza que não precisava de fazer nada de especial porque tinha o cabelo bonito porque era muito fino e castanho. Tens a certeza que não preferias que o pintasse; e eu dizia claro que sim e ela sorria irritada.
Não consigo ficar quieto a absorver esta luz estéril. Esta luz que mata. Por vezes a inquietude toma conta de mim como uma expressão ínfima de terror. Caminhava pela rua e imaginava-a a chamar por mim. Não a devia ter deixado sozinha. Uma das coisas boas da idade é que a inquietude pode ser entendida como senilidade. Está velho, não sabe o que faz. Claro que sei. Os homens avariam-se, e as mulheres também. Não quer dizer que se estraguem.
Caminhei longuíssimas horas. Uma ou duas. Ou mais. Acho que não sabia o que queria. Quando não sei o que quero ponho-me a andar pelas ruas. Cria-me a ilusão que me dirijo para algum lado; algum lado definido. Mas não caminho para nenhum sítio em particular. Passo pelo barbeiro, sento-me no café, compro uma fruta. Agora já sei porquê que os velhos andam sempre com um saco e o cabelo bem aparado. Nunca vi um velho com o cabelo comprido. Os sacos contêm a melancolia de ter tempo; contêm uma razão para sair de casa.
Eu ainda não ando de sacos. Os velhos que andam de saco sempre me intrigaram. Agora faço questão de não andar de sacos porque já sei a razão. A razão é a demonstração aos outros velhos da sua habilidade em viver por eles, sem ajuda, com toda a independência. Os velhos dos lares não usam sacos. Os outros velhos passam as manhãs e as tardes a competir com o lustre e volume dos sacos que transportam. Trazem nos sacos um quilo de farinha para fazer pastéis, quatro maçãs para a sobremesa, um infinito de desesperança, e a ilusão da actividade.
Esta luz mata-se a ela própria. E mata tudo à volta. Eu dou grandes caminhadas quando não sei o que quero mas eu sei o que quero. Quero convencer-me que ainda sou capaz de andar sozinho pela cidade e que não tenho uma mulher doente em casa. E quero culpar a luz se possível. Ou doutor, doem-me as costas, é esta luz que anda para aí, há que ter cuidado, vai ter de tomar estas gotas.
Gotas, remédios, comprimidos. Os sacos das farmácias são demasiado pequenos para engrandecerem alguém.
Quando o meu pai morreu todos me diziam, o teu pai morreu com uma grande dignidade. Sim uma grande dignidade e um grande cancro no estômago. Mas hoje há remédios, e tratamentos e gotas. Hoje já não se consegue morrer com dignidade. Hoje morre-se quando se desiste.
Ela nesse dia de manhã tinha-me perguntado, gostas de mim. Eu percebi que ali alguma coisa estava mal porque ela nunca me tinha perguntado isso. Gosto de ti como da primeira vez que te vi. Mas na primeira vez que me viste eras casado com outra. Ela sorriu irritada, e eu sorri por antecipação. Mas gostava dela e falava a verdade. Queria pedir-te um favor. Segurou-me a mão A mão com unhas desarranjadas e manchas furibundas. Queria que me deixasses sozinha esta tarde por umas horas, preciso de falar com um velho amigo. Algumas décadas de coabitação ensinaram-me a não discutir. Assenti.
Uma mulher se quiser engana sempre um homem. Quando cheguei a casa já a tinham levado. Acho que me tinha demorado mais do que pensava.
2 comments:
Adorei!
Se dançares tão bem como escreves, antecipo um encontro. Por agora, continua a escrever. Eu danço.
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