Monday, November 27, 2006

Composição de homem mais tocha

Ele ali estava; suor fétido nas formas, o rancor nos lábios. De novo. Lembro-me de ser criança e ter encontrado um homem deitado na calçada, o corpo achatado sobre os jornais húmidos e um coto soberbo bem erguido como uma tocha.

Nunca tinha visto um amputado; o meu olhar ficou gazeado sobre o membro ausente, o espaço de um braço que não existia. O meu passo estacou e fui puxado com força por alguém que me levava pela mão.

Passei horas e dias com a visão do vagabundo amputado na minha cabeça. O cheiro. O cheiro acompanhou-me meses. Aquele cheiro a sujidade húmida. A cara com uma barba manchada de amarelo-torrado e o olhar destruído sobre as pessoas. Essa cara nunca a esqueci.

Acho que na minha cabeça tinha a ilusão que os membros voltavam a crescer. Ou que se compravam membros novos. Ou que se morria. Sim; devia achar que sem um membro qualquer era morte certa.
Encontrei-o de novo no outro dia. No meio da calçada, aninhado para o lado da estrada, com o mesmo olhar diluído, o coto pendurado sobre as costelas salientes. Abrandei o passo e os nossos olhares confluíram. Sobre mim, aquele olhar impiedoso; um olhar vazio de vida.

Havia este homem que dormitava sobre a calçada; e que não interpelava ninguém, não pedia nada. Não esperava nada. De repente, aquele olhar não parecia tão ameaçador. Parecia um olhar de criança. Um olhar parado sobre um pequeno espaço; talvez sobre um pedaço de infância com sabor a algodão doce e a correrias pela rua.

O homem sem roupas decentes, sem sapatos, e sem um braço. Um olhar feito de não desejo, de não vida. Um olhar sem esperança. Nunca tinha visto um olhar sem esperança alguma.

Ao olhá-lo altivamente pelos meus óculos escuros e percebi sem qualquer desvio de certeza; habitar a vida sem esperança é a pior enfermidade que alguém pode padecer.

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