Monday, October 02, 2006

Cheguei



Passei horas e horas de chuva estrafegante meditando. Meditava num silêncio luminoso, e meditava actos. Os meus actos. Sabia que tinha um pulmão parado; e meditava sobre corpos cobertos de poeira e sentia as mãos molhadas com a cal do pensamento.
De uma forma suficientemente estranha para parecer natural, sentia que os próximos actos iam decidir muito mais que a própria carga natural que o agir comporta. E tinha essa sensação com a chuva a escorrer-me pela cara estanque. Decidir, critério de decisão, árvore de decisão, hemorragia de decisão. Há dessas alturas; uma altura sôfrega e imediata de decisão. A respiração suspensa, o pulmão parado, as mãos molhadas. E a chuva rufando como tropas marchando aguadas.
Silêncio na audiência em mim. O jogador russo segura o cavalo na mão; a jogada poderá ser determinante. E o jogador russo engole a peça e arrota uma libra de ouro.
Estive quase a ceder. Saber o que o destino importa sem ser no haraquiri. Não; pôr o sabre de lado, e meditar. E assim meditei.
Concluí, como o Lobo Antunes, que o mundo foi feito ao contrário. Feito do fim; e é pelo fim que se deve começar. Para onde se quer chegar. É como os labirintos; os labirintos são incrivelmente mais simples se se começar pela saída. É assim que se faz, está nos livros.
Começar pelo fim tem a grande vantagem de permitir a instauração de uma imagética infra-racional. No momento anterior à decisão, ao acto racional de deliberadamente excluir um caminho – sim, se fosse possível escolhia-se os dois e não nenhum, o que, apesar de tudo, também é curioso – encena-se, não o percurso, mas o momento final. Simples e trivial e constante
O caminho deve ser tapado; deve-se colocar uma manta sobre ele. Não se deve ver o caminho. Sim, o conflito não surge da tomada de decisão. Surge da acção que daí advém; do caminho a percorrer. Quase sempre.
O mundo começou pelo fim, e daí chegou a um princípio de uma forma impensável. Foi isso que fiz. Foi só seguir as setas.
Cheguei.

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