Friday, February 09, 2007

Montparnasse



A luz põe-se doce sobre o horizonte e reconforta o cinzento empalidecido que transborda pelas ruas. O cinzento que esborrata a calçada é agora melancólico e empedernido – muito contrastante com a euforia que preenchera a alma em Agosto. Os homens que partiram no Verão da estação de Montparnasse com sorrisos garbosos e poses convictas divagavam agora sorumbáticos nos interiores dos cafés mais baratos; aí o absinto era vertido pelas goelas secas pelo pó e pela verdade.

A luz que se põe já não alumia olhos ardentes e espumosos; os olhares pouco se cruzam e poucas palavras são trocadas; os homens descansam a um canto de jardim com sacos de papel encamisando o vinho jubilante; os homens bebem e a luz põe-se enquanto os corpos secam na margem do Somme.

O capitão António Simão ganhara o posto na tomada do arsenal do Alfeite às forças leais ao Rei; fora aí que perdera vista esquerda. Conta quem lá esteve que o capitão marchou 70 metros com o estilhaço saliente na cavidade ocular, sem que mais nenhum projéctil o atingisse até uma posição forte com sete praças e um sargento. Estes, impressionados com a valentia do capitão – e com a sua figura deformada – deixaram cair as armas e renderam-se. O capitão usava desde então uma pala que lhe ocultava a vista trucidada e lhe exponha a cegueira a metade. Quiseram colocá-lo na reserva, até porque a vista atingida era a do olho director. Mas o capitão manteve-se irredutível, e foi com agrado que ouviu notícia que um corpo expedicionário partiria para a Flandres.

Guerra na Europa, uma grande guerra. Esta ainda era uma geração de ideais, que habitou um tempo feito de revoluções, reis depostos, e tratados selados com a honra. Eram homens de bigodes recortados, caras escanhoadas, belíssimos uniformes e uma colónia intensa. Mas esta guerra tinha sido diferente das outras; tinha sido uma guerra sem heróis. Alguém dizia no Herald Tribune: o único herói desta guerra é o soldado desconhecido.

A visão da chegada do corpo expedicionário português a Santa Apolónia foi das mais tristes que o país vivera. Os pais aguardavam os filhos ausentes, as noivas os homens perdidos, e alguns filhos tentavam espreitar por entre as plissas das saias. Os poucos que foram devolvidos com vida apresentavam-se estropiados, com a respiração arfante devido ao gás, a cara lívida e todos eles, sem excepção, caminhavam com o olhar fixo sobre o chão.

Aos pais que encontravam filhos com vida, logo dezenas se quedavam num soluçar imenso. Mas os homens não queriam as suas famílias; queriam ficar entre eles, entre a sua terrífica normalidade, junto de um cheiro e uma linguagem que conheciam. O país vira-se ceifado da sua juventude e implorava agora perdão aos que regressaram.

O capitão António Simão não tinha ninguém à sua espera. Passou de forma abrupta por todos, escusou-se a falar ao general Sousa Pais que estava presente da recepção. Desapareceu. Enquanto as famílias rodeavam os sobreviventes com graças a Deus, e a fanfarra tentava alegrar as hostes, os homens iam perguntando com preocupação, Onde está o meu Capitão.

Conseguiste ficar com o outro olho? Foi com a sua doçura natural que Teresa recebeu o Capitão. Não tens nada que se beba nesta casa. Serve-te à vontade, mas olha que o Afonso deve estar aí a chegar. O capitão sentou-se na sala com uma jarra de brandy ao seu lado. Ficou a olhar para Teresa. Verificou a sua arma no coldre. Aquela guerra ainda ia reclamar mais um corpo. António, não sei o que é que pensas que vens cá fazer. O capitão esvaziou o copo e serviu-se de outro. Tirou a arma e apontou para a foto de casamento de Teresa e Afonso. Suspirou um bang. Venho dar os meus parabéns ao meu querido amigo pelo seu recente casamento. Teresa sentou-se à sua frente, a expressão inquieta, o olhar molhado. Aquele homem estava ali para matar, não lhe custar nada – era isso que ele fazia da vida. Ela não ia conseguir demovê-lo.

António, o Afonso é uma criança. E os duelos já não são permitidos. O Capitão lançou uma gargalhada que terminou de súbito. Quase se engasgou. Mademoiselle, mas quem é que falou em duelo? O teu querido Afonso vai apanhar dois balázios mal entre por aquela porta e não penses sequer em te levantar daí para o ir avisar.

Afonso abriu a porta com despreocupação e ainda avistou o olhar imóvel de Teresa antes de encarar o corpo do Capitão António Simão estendido no chão, ainda vivo, com a garganta aberta. Á sua frente, esvaía-se em sangue o único herói português da Grande Guerra.

No comments: